TEXTOS SOLTOS

#1 HOMEM-ARANHA | O Herói Do Operário, Da Classe Média, E O Reflexo Da Própria Audiência

Por: Gui Santos
Originalmente publicado no CuboGeek.com a 29 de Julho de 2017.


O Homem-Aranha é o super-herói mais popular de sempre. Seria fácil perder noção deste facto, com a popularidade crescente de outros heróis como o Homem de Ferro, o Capitão América e o Thor, que até ao início do MCU não estavam tão presentes na consciência colectiva do público, mas que agora se tornaram as caras dos filmes de super-heróis.
Mas a verdade é que as vendas de brinquedos do Homem-Aranha renderam em 2013 aproximadamente $1.3 mil milhões, mais do que os brinquedos dos Vingadores ($325 milhões), do Batman ($494 milhões) e do Super-Homem ($277 milhões) combinados. Um dos motivos mais óbvios para esta popularidade é o quão relacionável o Homem-Aranha é. O Peter Parker é um adolescente típico, com problemas típicos dos adolescentes, que subitamente ganha imenso poder e tem dificuldade em lidar com a responsabilidade que daí vem. O Peter Parker é um fanboy que ascende a super-herói, mantendo imensos dos aspectos que permitem a um público jovem identificar-se com ele.
Mas há outro aspecto menos óbvio do Peter Parker que o torna tão relacionável para tanta gente: ele não tem dinheiro. As origens humildes do Peter Parker são uma das facetas mais centrais à personagem, que está sempre presente, apesar de raramente ser o foco das suas narrativas, mas que informa imenso o carácter da personagem.

Basicamente o Peter Parker é um miúdo de classe média, que corresponde à grande percentagem da população Americana, representando maioritariamente trabalhadores manuais não-agrícolas, como operários fabris, mineiros, construtores civis, trabalhadores de armazéns, saneamento público, mecânicos, bombeiros, carpinteiros, pedreiros, electricistas, e a maior parte do trabalho físico que envolve construir ou fazer manutenção de alguma coisa. Estes são os chamados “blue-collar workers” devido às clássicas camisas azuis que estes trabalhadores usavam porque se podiam sujar mais sem se notar muito, e que os contrastava aos “white-collar workers” de cargos administrativos ou de gestão.
Este estatuto de “blue-collar worker” é muito evidente nos filmes do Homem-Aranha, realizados por Sam Raimi, de 2002, 2004 e 2007, com Tobey Maguire. Em Homem-Aranha, Peter vive numa casa pequenina, num subúrbio humilde de Queens. No primeiro filme vemos que o Tio Ben foi despedido da fábrica onde vivia porque esta foi comprada por uma grande corporação. Depois de ele morrer vemos por várias vezes a Tia May a queixar-se de ter pouco dinheiro, percebemos que tem dificuldade em pagar a renda e esconde ao Peter que o banco está a ameaçar ficar com a casa.
Em Homem-Aranha 2, Peter trabalha como entregador de pizzas, vive num apartamento ranhoso com uma casa de banho partilhada e ganha uma ninharia do Daily Bugle. Mas esta trilogia romantiza a pobreza do Peter. Atribui imenso valor emocional ao modesto anel de noivado que a Tia May oferece ao Peter, que se sobrepõe a qualquer valor monetário que possa ter e os problemas de dinheiro do Peter são usados para efeitos de humor e comédia.

Isto é ainda mais óbvio no fim de Homem-Aranha 2 quando a Mary Jane foge do seu casamento com um astronauta (!) para ir ter com o pobretanas do Peter Parker e o seu emprego das 9 às 5 mal pago. Ainda mais, em Homem-Aranha 3 o humilde Peter Parker que faz o seu trabalho diligentemente no Daily Bugle é contrastado com Eddie Brock que é um adulador que forja fotos do homem-aranha para lhe passar à frente. A justiça prevalece quando Eddie Brock acaba sendo despedido e transformando-se no Venom (uma metáfora da corrupção moral que ele já possuía desde o início).
Esta ideia do trabalhador humilde e diligente de classe média que vence contra as adversidades e se torna um herói é o típico Sonho Americano, e que ressoava muito bem no início dos anos 2000 quando a ideia de que trabalhar para subir na vida ainda era válida e prevalente. No entanto em 2008 veio a maior crise financeira mundial desde a Grande Depressão de 1930. A crise de 2008 foi basicamente provocada por uma bolha no mercado imobiliário que levou aos bancos de investimentos como o Lehman Brothers a tomarem riscos excessivos, que depois levou a que vários governos mundiais tivessem de desviar fundos para resgatar esses bancos.
Foi exactamente a população jovem, com menos rendimentos e menos estabilidade profissional que sofreu mais, com enormes taxas de desemprego na América e Europa, que apenas agora, quase 10 anos depois, começam lentamente a regressar a valores de pré-crise. E os jovens ficaram zangados e extremamente desconfiados dos seus governos, levando a movimentos como o Occupy Wall Street, protestando os grandes bancos.

É neste contexto que estreia O Fantástico Homem-Aranha em 2012, realizado por Marc Webb e protagonizado por Andrew Garfield. Por esta altura a ideia de que o trabalho árduo é recompensado tinha perdido muito do seu romantismo, e os filmes com o Andrew Garfield reflectem isso. A pobreza do Peter Parker é raramente focada nestes filmes. Contrariamente às bandas desenhadas o seu pai é um cientista rico e de sucesso que anda de jacto privado de um lado para o outro, a casa do Tio Ben e da Tia May é muito mais fina do que nos filmes anteriores, e o Peter Parker trabalhador árduo é mudado para o Peter Parker geek, cientista genial que ajuda o famoso Dr. Connor.
Este Peter não tem de trabalhar a entregar pizzas, apesar de percebermos que a Tia May continua a fazer horas extra como enfermeira no hospital para ganhar mais algum dinheiro.
No entanto a sua popularidade com a classe média continua extremamente prevalente. em O Fantástico Homem-Aranha são os trabalhadores da construção civil que se unem todos para coordenar as suas gruas para dar ao Homem-Aranha uma maneira de atravessar a cidade mais depressa; em O Fantástico Homem-Aranha 2: O Poder de Electro (2014) são os bombeiros da cidade que ajudam o Homem-Aranha a lutar contra o Electro, encharcando-o com as mangueiras dos seus carros de bombeiros.
O Peter Parker do MCU, interpretado por Tom Holland e realizado por Jon Watts, está algures entre estas duas representações anteriores. Apesar de Homem-Aranha: Regresso a Casa (2017) não se focar tanto no estatuto sócio económico de Peter (ele continua a ser mostrado como um génio geek que anda na Midtown School of Science and Techology, que não é bem uma escola privada, mas claramente não é uma escola de bairro), em Capitão América: Guerra Civil (2016) ele é mostrado a recuperar componentes informáticos do lixo, e a primeira coisa que pergunta quando o Tony Stark fala da “bolsa” é se envolve dinheiro.

Adrian Toomes, o vilão do filme interpretado por Michael Keaton, é por sua vez o paradigma do operário “blue-collar” de classe média. Adrian Toomes é o dono de uma pequena companhia de construção que se especializa em limpar e reconstruir os estragos provocados pelos Vingadores enquanto lutam contra alienígenas. No início de Homem-Aranha: Regresso a Casa vemos Adrian Toomes e a sua equipa a limparem os restos de um alienígena gigante, quando chega a Damage Control, uma empresa subsidiária das Indústrias Stark em junção com o Governo, que toma controlo da situação, expulsando Toomes e a sua companhia, deixando-os desempregados. Tal como Toomes diz, isto é competição desleal, no sentido em que os Vingadores causam estragos, e depois o Tony Stark tem lucro com a reparação desses estragos, e leva à falência de companhias mais pequenas como a de Toomes.
Esta equivalência entre o Governo e os Vingadores não é acidental. Outra das principais cenas do início do filme é quando o Homem-Aranha confronta um grupo de bandidos que estão a roubar um banco usando literalmente máscaras dos Vingadores. Durante essa luta, eles acidentalmente destroem um antigo café de bairro, famoso pelas suas sandes, cujo dono era um homem honesto e trabalhador. Volto a frisar que a classe média, os “blue-collar workers”, representam 60% da população Americana, e que durante os últimos 10 anos sentiram-se ignorados e desvalorizados pelo seu próprio governo. Foram eles um dos principais alvos da campanha presidencial de Donald Trump, que sistematicamente prometeu mais empregos, por exemplo, no sector mineiro.

Isto volta a ser espelhado em Homem-Aranha: Regresso a Casa pela figura do Tony Stark, que na maior parte das vezes não se digna a interagir directamente com Peter Parker, enviando em vez disso o seu empregado Happy ou até uma armadura controlada remotamente enquanto ele está na Índia numa festa qualquer. Tony Stark sistematicamente desvaloriza o Peter Parker, dizendo-lhe que ele não está pronto para se juntar aos Vingadores, minimizando-o dizendo que ele deve limitar-se a ser um “friendly neighborhood spider-man“, e chegando ao ponto de lhe retirar o fato tecnológico todo avançado que lhe tinha dado antes (quando era conveniente).

O próprio Adrian Toomes reflecte imenso desdém e raiva contra o governo e super-heróis por ter sido ignorado e injustiçado, quando diz: “The rich and the powerful, like Stark, they don’t care about us. We have to pick up after them. We have to eat their table scraps.” Adrian Toomes usa este argumento como justificação para recorrer ao crime e criar a armadura voadora do Abutre, de maneira a obter alguma da riqueza que sente que lhe foi injustamente negada.
O Peter Parker, por outro lado, reage à adversidade adaptando-se às suas novas circunstâncias, e aprendendo a usar os seus poderes de maneira muito mais competente, começando realmente a explorar o seu verdadeiro potencial como Homem-Aranha. Essa aprendizagem culmina com o Homem-Aranha a impedir que o Abutre roube um carregamento de tecnologia das Indústrias Stark.
É só quando o Peter Parker revela o seu verdadeiro poder e competência como super-herói, mostrando que é capaz de proteger não só as pessoas à sua volta, como também os interesses de pessoas mais ricas e poderosas que ele, que Tony Stark volta a aparecer em cena. Tony Stark parece verdadeiramente ansioso por tornar o Peter Parker um Vingador, inclusive oferecendo-lhe uma versão ainda mais avançada do fato que lhe tinha dado antes. A reacção de Peter Parker é surpreendente. Em vez de aceitar fazer parte dos Vingadores, que era o seu desejo no início do filme, ele recusa, afirmando que prefere continuar a ser o “friendly neighborhood spider-man” onde acredita que consegue fazer mais pelo cidadão comum, e pelas pessoas da comunidade em que cresceu.

Apesar de tanto Adrian Toomes como Peter Parker representarem personagens da classe operária, há um claro contraste na maneira como reagem às crises que atravessam.
Adrian Toomes usa o seu ressentimento contra o governo e figuras de autoridade para justificar actos imorais e até auto-destrutivos, ao passo que Peter Parker confronta essa adversidade melhorando-se e tentando ajudar os seus pares.

A sociedade americana está a passar nos últimos anos por um período de convulsão social que levou à eleição de Donald Trump como presidente, e isso deu no que se tem visto ultimamente. Isto resultou pelo menos parcialmente de uma reacção ao seu descontentamente com os governos anteriores, cada vez mais desconectados das necessidades e dificuldades do povo, levando-os a procurar soluções mais extremas e não-convencionais (para dizer pouco) como o Donald Trump.

A sociedade e juventude americanas começam a perceber que têm muito mais capacidade de alterar o mundo à sua volta, mas que isso pode ter consequências desastrosas.
As pessoas não se identificam com milionários playboys, deuses do trovão ou gigantes verdes, mas identificam-se com miúdos desajeitados e com problemas de dinheiro. Peter Parker é o derradeiro substituto de audiência e, tal como a sua audiência alvo que são os jovens americanos, ele mantém uma distância saudável dos ricos e poderosos, acredita que pode ajudar a sua comunidade, e descobre que tem muito, muito poder.
E não te esqueças, com grande poder vem grande responsabilidade.

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#2 O ÚLTIMO VÔO DO ABUTRE

Por: Miguel Leão
Conto, de meados de 2014.


Num deserto. Foi a cantar que apareceu o maior de todos os abutres que haviam caminhado no nosso globo. Mesmo à minha frente. 
Sem tirar, nem pôr. 
Cantava numa língua que eu não conhecia e falava de histórias que já não existiam a não ser nas suas canções.
 Vinha entrapadamente vestido e calçava umas sandálias gastas, mas provavelmente de marca, pelo que se tinham já aguentado bastantes anos, segundo deduzi. 
O seu andar era confiante, quase desafiador. A maneira como voava, triste.
 Mas o que estaria este abutre a desafiar?

Chegou perto de mim, bico em punho e penas ao léu. 
Ele sabia sem dúvida andar e sem dúvida sabia também exibir aquilo que valia enquanto penugem. Mas e as suas histórias, quem as ouviria? 

À minha frente, o pobre pássaro, fitava um espelho de incertezas, negadas pelo seu passado. 
Sentia-se ensinado. Sentia-se já vivido, sabido de muito mais que pouco e pouco mais lhe restava para saber mais do que muito.



- “Sou o abutre que viu tudo e venho falar-vos da verdade”

Gritou o pobre abutre, quase rasgando os pulmões, gastando, na minha opinião, o seu folgo em vão, visto que apenas lá estava eu e três cadáveres, para escutar as suas preces. 
“Os mortos não te ouvem” pensei eu. 
O empenado podia gritar ao mais alto dos tons, mas o que já não existe, já não existe. O que está apagado e vazio de vida, desafogou-se de existência e é agora nada mais que um corpo, morto, sem alma, sem historias para contar: pois os mortos além de não ouvirem, não falam. E memórias também não têm. Nunca vi um bule com memórias, nem uma faca. 
Um corpo morto não passa disso, de um objeto. O fim existiu para ele como parte de uma história. O seu fim, foi na verdade a sua história.
História em que o seu início e meio foram apagados pelo mero empobrecimento da humanidade.

- “Alimento-me do fim e sei o que custa começar”

Senti-me quase triste e muito desapontado com aquele pobre pássaro. Mas decidi respeitá-lo, visto que vinha de tão longe. 

Das profundezas do mundo, segundo ele. De onde a luz não brilhava, de onde o ar não circulava e tudo o que era mau se amontoava numa pilha, cinzenta e crua. Haviam demónios e pessoas, de todos os tipos. Mentiras como lençóis e colchas de açúcar. Tristeza inumerável e vidas estragadas ou paradas ou iguais. Abandono. 
Já estive lá.

 Mas voltando. 
Sim, boa, eu sei como é desagradável e incómodo, mas sei também que palavras pouco ajudam. E aliás, sendo este tal abutre, tão sábio e vivido, certamente saberá inclusive, que em palavras os efeitos não se alicerçam, em letras faladas poucos lares se construíram – Segui eu, em pensamento.

- “Quem cala consente.”

Os mortos não falam!!! Pensei eu, e eu também não vou responder a um pássaro presunçoso, certamente! 
Não falar não significa que esteja calado, simplesmente estou-me a privar do acto de verbalizar o movimento mental, de ritmo não baixo, alucinado pela hora. Não usas relógio? É tarde.

A privação de um acto não significa o efectuar de outro.

 Ou significa?

 Desta vez o abutre não disse nada.

 Vai na volta significa – passou-me no cérebro. Foi depois disto que começaram os círculos.

Ah, estimados círculos, tão previsíveis e redondos.

Andou à nossa volta horas, ou dias. Dias são igualmente horas, só que em maior quantidade.

 Ao observar, no seu olhar de abutre, que os mortos continuavam na realidade e para todos os efeitos, mortos, o pássaro começou a desanimar a intenção dos seus círculos e a focar a sua atenção em mim, até que pairou a sete centímetros da minha cara. 
Começou a grasnar-me com fogo nos pequenos olhos, preenchidos de preto. Já não percebia palavras, apenas sons estridentes, que, por acaso, me disseram bastante: disseram que era um som desagradável e evitável de ouvir.

Estiquei o braço direito e torci-lhe o pescoço. Caiu morto e pesado.




 Lá estava eu, rodeado de quatro seres mortos. 
Foi nessa altura que me deu uma infinita vontade de jogar damas chinesas. Mas sozinho não ia longe.


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BLACK PANTHER | Porque A Mensagem Política E Social Do Filme É Relevante E Necessária

Por: Gui Santos
Originalmente publicado no CuboGeek.com a 27 de Fevereiro de 2018.


Recentemente estreou Black Panther, o 18º filme do Marvel Studios, que em 4 dias arrecadou 235 milhões de dólares. É um filme incrivelmente bem escrito, com personagens fortíssimas, um worldbuilding sólido e apelativo e uma banda sonora brilhante. O filme recebeu excelentes críticas, e tem tido uma recepção do público surpreendentemente entusiástica, criando movimentos sociais inesperados, como por exemplo as angariações de doações para levar crianças de bairros desfavorecidos a irem ver o filme aos cinemas.
A mensagem política e social do filme tem sido alvo de imensa discussão, e alguma controvérsia. O meu objectivo é explorar o significado dos elementos políticos em Black Panther para compreender melhor a mensagem política do filme. AVISO 1: este artigo contém spoilers do filme e da banda desenhada do Pantera Negra. AVISO 2: o autor deste texto é um amador que não assume nenhum tipo de autoridade ou competência nestes assuntos, e está só a juntar as peças da melhor maneira que sabe.

Em primeiro lugar é preciso relembrar que África teve uma longa, rica e complexa história antes dos colonizadores lá chegarem. Um exemplo disso foi o Império do Mali (1230-1619), que no início do século XIII era o principal produtor de ouro do mundo, no seu pico tinha uma extensão de 1,138,000 km2 (França + Espanha) numa altura em que apenas o Império Mongol era maior; o seu imperador Mansa Musa I é frequentemente considerado o homem mais rico da História. Outro exemplo é a Civilização Suaíli, um conjunto de metrópoles portuárias na costa leste de África, sem um governo centralizado, mas que partilhavam uma língua e uma religião em comum; os portos de Mombassa, Zanzibar e Kilwa faziam comércio frequente com a China, Arábia, Índia e Pérsia, exportavam gado, marfim e madeira e importavam bens de luxo, como porcelana, perfumes, cosméticos, especiarias e livros. Na sequência inicial de Black Panther, e nas bandas desenhadas, Wakanda é-nos mostrada como tendo sido uma destas civilizações africanas incrivelmente ricas e coloridas, onde por acaso havia o metal precioso Vibranium.
Só o facto de no geral estes nomes do Império do Mali e da Civilização Suaíli serem quase desconhecidos é indicativo do quão pouco nos é ensinado acerca da história de África. Os portugueses, durante os Descobrimentos, “descobriram” o Império do Mali em 1444 quando lançaram vários ataques a aldeias costeiras para raptarem africanos e escravizá-las, e “descobriram” a Costa Suaíli em 1505 quando atacaram Kilwa, um dos seus principais portos. Esta imagem dos descobridores europeus a levarem africanos para os escravatura é-nos mostrada nessa mesma sequência inicial de Black Panther, e é-nos explicado que é apenas por causa do Vibranium que Wakanda consegue evitar a colonização europeia, quando à sua volta o resto de África é sistematicamente e progressivamente conquistada e colonizada durante os séculos seguintes.

O comércio de escravos tem o seu pico no século XVIII, altura em que os portugueses, os ingleses e os franceses eram os principais mercadores de escravos africanos no Atlântico, e a colónia portuguesa de Angola era o foco dominante desse comércio, onde a vasta maioria dos escravos eram comprados e vendidos. Nos EUA a importação de escravos é proibida em 1808, o que leva ao aumento da “produção doméstica”; por altura da abolição da escravatura havia 4 milhões de escravos no sul dos EUA. É preciso literalmente uma guerra civil de 5 anos para acabar com a escravatura, o que acontece finalmente em 1865. Quase 100 anos depois, em 1964, depois de décadas e décadas de agitação social, activismo, e manifestações violentas, é que é finalmente aceite legislação que garante direitos iguais aos cidadãos de raça negra, permitindo-lhes pela primeira vez usar as mesmas escolas ou casas de banho que os brancos.
Apesar disso a violência contra os negros nos EUA continua forte, como aconteceu em 1965 durante a famosa marcha de protesto de Selma para Montgomery, onde cerca de 600 protestantes negros foram brutalmente atacados pela polícia que carregou sobre a multidão a cavalo. É nesse clima de violência e revolução social que surge pela primeira vez a personagem do Pantera Negra, criado por Stan Lee e Steve Ditko, no número 52 de Fantastic Four, em Julho de 1966.
Apenas 3 meses depois, em Outubro de 1966, Bobby Seale e Huey Newton, fundam em Oakland, Califórnia, o Black Panther Party (Partido dos Panteras Negras), que tinha como objectivo criar patrulhas armadas de negros para protegerem as comunidades negras da brutalidade policial. Oakland, na altura, tinha uma força policial de 661 polícias, dos quais apenas 16 eram de raça negra. Uma das cenas iniciais do filme Black Panther mostra-nos que o seu vilão, Erik Killmonger, cresceu precisamente em Oakland, numa das suas referências mais directas ao movimento político que J. Edgar Hoover, director do FBI, caracterizou como “a maior ameaça à segurança interna do país”.

Obviamente que a discriminação e violência contra as comunidades negras não acabou aí, e em 1992, após a absolvição de 4 polícias acusados de uso de violência excessiva (espancamento) de um homem de raça negra, as comunidades negras de Los Angeles revoltam-se. Nos 6 dias que duraram os motins ocorreram pilhagens, agressões, fogos postos e assassinatos, que resultaram em danos estimados em mais de mil milhões de dólares. A ordem só foi restabelecida depois da intervenção conjunta da Guarda Nacional do Exército da Califórnia, da 7ª Divisão de Infantaria e da 1ª Divisão de Marines, depois de 63 mortos, 2383 feridos e 12000 presos.
A mesma cena inicial de Black Panther que nos mostra que Killmonger cresceu em Oakland também nos informa que é passada em 1992, ao fundo a televisão do pai de Killmonger está a passar imagens dos motins de LA, e é deixado mais ou menos subentendido que o pai de Killmonger está a reunir armas por causa dos motins. Estes elementos, a caracterização da história passada de Wakanda, a referência à escravatura e ao colonialismo, a referência à cidade de nascimento do Black Panther Party e ao ano dos motins de Los Angeles, estão todos lá para deixar claro o fundo cultural e político que influenciou Erik Killmonger, e não é de admirar que Killmonger esteja zangado.
Contrasta com isso a representação da Wakanda actual, como um país futurista, extremamente rico, e orgulhosamente africano. A caracterização visual do país é um dos pontos fortes de Black Panther, e a sua estética afro-futurista é fascinante. A estética tipicamente africana, com o uso de cores garridas, padrões geométricos e elementos naturais inspirada directamente de trajes tradicionais africanos, está perfeitamente misturada e integrada com a tecnologia super-avançada do país. Só a caracterização de um país Africano desta maneira é revolucionária em si mesma, dado que a quase totalidade das representações de África até agora são sempre de um continente poeirento, pobre e devastado pela guerra, como se não houvesse ou pudesse haver nada para além disso.

Mas mais importante do que isso é que Wakanda no início do filme é-nos mostrado como um país fechado do resto do mundo, não tendo trocas comerciais com outros países, impedindo a entrada de refugiados e não providenciando ajuda internacional. É uma atitude isolacionista que tem como objectivo explícito de manter a paz e proteger Wakanda e a sua identidade nacional, e ao início do filme o herói T’Challa partilha desta atitude. É difícil não fazer comparações com o estado dos EUA actualmente, e a sua recente relutância em aceitar imigrantes associada a um nacionalismo crescente. Por seu lado Erik Killmonger, por não ter crescido em Wakanda, revê-se numa identidade racial. Quando toma o trono de Wakanda diz qualquer coisa como “Por todo o mundo pessoas que se parecem connosco sofrem” e questiona a atitude de Wakanda de não ajudar outros da mesma raça. Ele está determinado a obter retribuição por injustiças históricas, e definitivamente tem razões para sentir isto.
No entanto ele diz também que o mundo está cada vez mais pequeno, e só há espaço para os conquistadores e para os conquistados, e quer usar o Vibranium para criar armas e dá-las às populações de raça negra do mundo para lutarem e libertarem-se dos seus opressores numa revolução radical. Esta é uma ideia muito reminiscente da Revolução Francesa do século XVIII, na qual a raiva da população empobrecida e oprimida, alimentada por fantasias de vingança contra a aristocracia, resultou numa revolução sangrenta.

Mas até esta atitude de Killmonger é um resultado de ter sido criado nos EUA onde para muitos jovens afro-americanos juntar-se ao exército é a única maneira de escapar à pobreza. Killmonger é treinado pelo Exército Americano, e é enviado para o médio oriente onde lhe ensinam tácticas para desestabilizar governos e derrubar regimes, e a determinada altura o agente da CIA Everett Ross diz “He’s one of ours“. A ironia aqui é que Killmonger quer colonizar os colonizadores, porque foi isso que os colonizadores lhe ensinaram a fazer. Ele chega a dizer que o Sol nunca se voltará a pôr sobre Wakanda, numa referência directa ao Império Britânico, que se dizia ser tão grande que o Sol nunca se punha sobre o seu território, mais uma vez equiparando-o aos colonizadores.
Por muito justificáveis que sejam os sentimentos de Killmonger, a verdade é que não deixa de ser um vilão, extremista e violento, incapaz de ver para além da sua raiva, e esta atitude é um reflexo da dificuldade que a nossa sociedade tem em lidar com o seu passado problemático. Da mesma maneira que ele culpa o T’Challa pelos pecados do seu pai T’Chaka, também culpa os povos actuais pelos pecados dos seus antepassados.
É aqui que a personalidade e acções de T’Challa, o herói do filme, começam também a tomar um carácter político, por comparação com Killmonger. T’Challa assume a rivalidade entre a Tribo das Panteras e a Tribo dos Gorilas, mas afirma que não é responsável pelos erros de Reis passados, e sai do seu caminho para forjar uma nova amizade entre as novas tribos. Da mesma maneira, apesar de não negar os erros passados das pessoas de pele branca, não demonstra animosidade pelos seus descendentes actuais, e alia-se a eles para resolver os problemas actuais. É esta atitude optimista de T’Challa que lhe permite aceitar as ideias de Killmonger de que Wakanda precisa de evoluir e abrir-se mais ao mundo, mas ao mesmo tempo compreender que a violência não é a solução para isso.
T’Challa cresce ao aprender que é possível evitar as posições extremas de cada lado do espectro, e tomar uma atitude mais moderada. No fim do filme, durante a conferência nas Nações Unidas, ele diz “In times of crisis the wise build bridges, while the foolish build barriers“. Ele rejeita o nacionalismo wakandiano e a etnicidade killmongeriana, escolhendo em vez disso uma ideologia humanista, mais moderada e construtiva, proclamando que toda a humanidade é uma única tribo, e que Wakanda vai começar a trabalhar para isso. Finalmente, o facto de que tanto Killmonger como T’Challa estarem a lidar com os problemas que lhes foram deixados pelos seus pais, revela-nos que o público alvo deste filme é a nova geração de jovens, que subitamente dão por si adultos e a terem a responsabilidade de lidar com o mundo.

Portanto, qual é a mensagem política que emerge do enredo e decisões das personagens neste filme? Black Panther mostra-nos uma visão gloriosa da cultura africana, liberta da carga negativa de séculos de opressão, da qual os seus descendentes se podem orgulhar e à qual aspirar. O filme assume o passado traumático da História, explora as suas consequências actuais, mas deixa explicitamente claro que a violência não é a solução para essas consequências. Em vez disso, através de T’Challa, o filme transmite uma mensagem de optimismo, de como os jovens de raça negra nos EUA e no mundo têm poder para efectivar uma mudança positiva na sociedade, através de cooperação e diálogo.
Esta mensagem extremamente positiva, fantasticamente escondida dentro de um filme de super-heróis maravilhosamente executado, interpretada por um elenco de actores excelentes, todos de raça negra (porque a representação é importante), justifica que este filme esteja a ser considerado um movimento revolucionário.

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Carta de despedida a um ofício ingrato

Por: PASCOAES (Autor Convidado)
Data desconhecida

Não existe nada mais sagrado que a luz. A luz representa o limiar entre o mundo físico e o imaterial.
Após alguns anos a fazer vários ensaios sobre a natureza humana, o humano e a sua existência, para onde evoluiu, o que criou à sua volta, posso apenas chegar a uma conclusão: Foi esquecida a simbologia da luz.

A luz tem uma velocidade própria. Nós não podemos atingir a velocidade da luz, viajar em segundos, não nos movemos no tempo sem a contemplação do espaço. Já a luz, é espaço e é tempo. É passado e é futuro. A luz das estrelas, que vemos à noite a brilhar no céu, pertence a uma estrela que já não existe. Mas nós contemplamos essa luz, ela existe aos nossos olhos, apesar do facto da estrela estar morta. Isto leva-me a concluir que o que sobra é a luz, as estrelas são mortais e a mortalidade é apenas um assunto fora de moda.

Na terceira parte deste pensamento cheguei então à questão: Porque faço eu filmes? Qual é a possibilidade ou probabilidade de eu me equiparar à importância da luz? Zero. O que importa as pessoas ouvirem, se as pessoas não vão compreender a importância da luz. Não sei, sinto-me pequeno e grande ao mesmo tempo. Estas noções do sagrado deviam-me dar força, mas a minha condição humana é pequena. Eu sou um humano a tentar provar o sagrado com uma câmera? A câmera capta, grava e reproduz a luz. Girou sempre tudo à volta disso. Como posso eu manipular a luz? Não posso. É inútil e ingrata esta tarefa. Inspirar pessoas? Tentar mudar alguma coisa à minha volta? Destruir os conceitos para que as pessoas entendam que os conceitos são muros e não montanhas?

Como posso eu continuar a filmar quando me deparo com esta irrealidade? Não faz sentido. A única coisa que importa é claramente a luz. Os filmes não passam de mais uma tentativa. Devo eu viver em busca de uma tentativa melhor, sabendo no meu íntimo que é um caminho sem fim? Haverá alguma maneira de captar a luz que eu vejo? Para que os outros também a possam ver. Foi este o ponto de partida para o último filme que eu fiz.

Como posso eu matar os meus medos caçando e capturando a luz? Eu sabia que seria uma perseguição sangrenta e desleal, sabia à partida que o meu ser sofreria mutações espirituais às quais eu poderia, na pior perspectiva, sucumbir. Estava ciente do quão perigosa seria essa dança. Tenho medo do escuro. Ouço sons. Vejo formas. Sinto-me perdido. Não há direção no escuro. Eu sabia que podia ficar por lá. Mas isso não me travou, porque a intenção era exactamente matar os meus medos.

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